O Mesc (Museu da Escola Catarinense) recebe na sexta-feira (5), às 18h, a exposição “As Coletoras: Ressignificações da Obra de Eli Heil e Vera Sabino”, a sexta e última coletiva do ano promovida pela Acap (Associação Catarinense dos Artistas Plásticos) para marcar seus 50 anos. Reunindo 24 dos atuais 47 associados, ela pode ser visitada até 24 de fevereiro de 2026. Mas a programação festiva não termina por aí. Mais uma exposição, com Franklin Cascaes como tema, está agendada para março, na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
A diretoria da Acap e os expositores, que perderam em 2009 sua sede instalada desde 1985 no prédio da Alfândega, destacam o orgulho de levarem suas criações a espaços tão significativos para a arte catarinense ao longo do ano, chegando agora ao prédio em estilo neoclássico que abrigou inicialmente a Escola Normal Catharinense e que desde 2007 é sede do Mesc.
Os trabalhos, selecionados pelas curadoras Meg Tomio Roussenq e Anna Moraes, dão protagonismo às destacadas catarinenses Eli Heil (1929-2017) e Vera Sabino, que aos 77 anos é a única fundadora viva. Para as criações, eles recorreram às memórias e pesquisas para eternizar o legado deixado por Eli e o ainda vivo de Vera. As obras também carregam as marcas muito pessoais de seus criadores, alguns nem nascidos na época da fundação.
Eli foi a primeira mulher a presidir a Acap, na segunda gestão, de 1981 a 1983. A jornalista Néri Pedroso revela no livro “Memória, Legado e Resistência – 50 Anos da Associação Catarinense dos Artistas Plásticos”, lançado em novembro passado, que não há registro nas principais cronologias da entidade de sua participação como fundadora. Da mesma forma, a atuação de Vera também aparece de forma mais tímida. Mas na primeira diretoria, presidida por Martinho de Haro, as duas constam como conselheiras fiscais ao lado de Pedro Paulo Vecchietti.
Sob o conceito de “Coletoras”, lembra Marlene Eberhardt, autora de “Redenção”, emerge uma reflexão sobre o ato de recolher vestígios da natureza, da memória e do tempo, para transformá-los em denúncia visual.
Um mergulho literal no legado das “coletoras”
Um dos associados mais antigos e tesoureiro da Acap, Onildo Borba optou, com outros quatro colegas, a exaltar as duas homenageadas. Lembra que Eli, assim como Meyer Filho, delirava com as criaturas antropomórficas de sua imaginação cósmica universal, como em Mundo Ovo e nos seres de biodiversidade colorida. Na apreciação desse olhar, criou “Um Olhar Coletor”, com acrílica sobre tela. Já no imaginário de Vera, buscou a harmonia entre os seres, as flores e a vegetação em “No Jardim da Criação”.
O presidente da Acap, Gelsyr Ruiz, traz “Fragmentos do Presente”, uma referência à obra de Vera, por meio da colagem analógica. “As figuras que crio se tornam territórios híbridos, espelhando a degradação ambiental e as novas formas de gênero, em tensões entre o sagrado, o profano e a identidade. Meu gesto, enquanto coletor, reinscreve memória, mito e urgência contemporânea em diálogo com o presente”, descreve. Para Eli, criou “Seria Essa a Salvação?”, com colagens que entrelaçam imagens de degradação ambiental com fotografias autorais e fragmentos. Sobre essas camadas, uma “árvore espiritual”, que anuncia o renascimento.
Da nova geração, a secretária da Acap, Larissa Arpana, eterniza a figura da avó, mulher essencial em sua vida e que morreu recentemente, em “Nercy Vive – Nas Memórias”, ressignificando Vera. “As imagens evocam as coleções de minha avó, seus objetos, os vestígios de sua presença em minha memória”, explica. Cada fotografia está inserida em uma pérola, como a joia nascida da ostra. O molusco que a protege está em formato de um dos seus pulmões, metáfora do respiro que mantém viva a memória.
Já “Nercy Vive – Em Algum Lugar” retrata o esqueleto do tórax humano acompanhado de pérolas e ostras. “Ressignifico Eli, incorporando temas recorrentes em sua trajetória, como a conexão com o sagrado.” Expressando o sofrimento com a perda da avó e a ausência de três costelas, Larissa busca a superação desta ausência, tanto das costelas quanto da presença física de quem se foi, tentando enxergar o que existe além do físico.
Maria de Minas também resgata Eli em “Mapa de Pedra e Luz”. Para ela, uma caminhada transforma uma praia da Ilha em ateliê. “Coleto pequenas pedras brancas e as sobreponho a uma imagem que subverte os limites da fotografia tradicional”, explica. Em “Vestígio da Ilha”, busca a tradição, os costumes e a cultura local tão fortes na obra de Vera. “Tal qual uma artista coletora, apresento os vestígios daquilo que caracteriza as coisas da cidade, como se a mitologia pudesse ser substituída pela arqueologia”, explica. Pedras, folhas, cordas e redes de pesca servem de berço para a fotomontagem que mescla elementos da identidade manezinha.
Andrea V Zanella optou por um bordado com aplicação de tecido estampado, reproduzindo as duas presenças fortes e autodidatas da cena artística. Para uma, o folclore ilhéu, os santos, as igrejas, as flores e as figuras femininas; para outra, as dores e sonhos que se lançam com a intempestividade de um vômito.
No bordado em homenagem a Vera, um pássaro em azul compõe cena cujas cores destoam de seu legado. “Escolhi cores primárias para dialogar com o bordado em homenagem a Eli, cujo pássaro remete ao seu Mundo Ovo. Esse pássaro foi por ela desenhado na dedicatória do seu livro, “Vomitando os Sentimentos”, que repousa na estante de meu atelier”, conta.
O desafio instigante da arte libertadora de Eli
A influência incontestável de Eli para os artistas contemporâneos está no fato de que mais da metade escolheu homenageá-la. Aquarelista e arquiteta, Gabriela Luft dialoga com a obra de Eli enquanto prossegue sua pesquisa pessoal em aquarela. Para ela, pintar é também um gesto de coleta. E em “O Olhar Como Gesto de Coleta” registra paisagens urbanas e litorâneas que o tempo insiste em deixar: casas antigas, portas e janelas cheias de histórias, cores e memórias.
O resultado está em nove coleções de aquarelas retratando as sensações que os locais sugerem. “Eu pintava defronte aos próprios lugares — sentada, em pé, em calçadas estreitas, sozinha ou acompanhada, às vezes sob o olhar curioso de passantes”, conta, destacando que não quis uma reprodução fotográfica, mas captar a essência e a energia do momento.
Rodrigo Gonçalves, que vem explorando a delicadeza dos tecidos e a força das costuras, bordou dois corpos em linha vermelha sobre véu em “Adão e Ivo”. Adão, à esquerda, abre os braços e olha para baixo, reconhecendo a terra, o peso, a origem. Ivo, à direita, também se abre, mas ergue o rosto e o peito, se oferecendo ao ar, à travessia. Entre os dois, um espaço de respiro onde o fio vermelho é sangue e o ar que sustenta.
“Penso em Eli e em seu Adão e Eva, que guardavam o portal Mundo Ovo. Quando a estrada avançou e o governo demoliu as esculturas, Eli recolheu os fragmentos, pintou-os de vermelho e transformou os destroços em um cemitério de Adão e Eva. Onde havia Adão e Eva, há agora Adão e Ivo, abrindo passagem para um modo de estar junto, um nascimento sem culpa. A cortina de fuxicos pende como corpo têxtil, em que cada retalho guarda a memória de um toque”, explica.
Artista gravador, Gavina lembra a complexidade da obra de Eli com um trabalho inserido na série Mitos, iniciada na primeira exposição festiva da Acap. Para ele, é preciso tempo, escuta e imersão para entender a artista. E na figura de Iemanjá, de 1987, encontrou uma síntese em que a entidade africana, sobre o processo do sincretismo e da colonização, assume o manto cristão de Nossa Senhora. Ao redor, criaturas marinhas e renda de bilro – traço açoriano – reafirmam o pertencimento ao universo manezinho.
Iemanjá é ponto de partida para o trabalho em que Gavina sobrepõe a figura de uma mulher preta multifacetada. A partir de um desenho em grafite reproduzido em fine art entrelaçado à imagem da Iemanjá de Eli, também impressa em fine arte sobre papel canson, revela a força vital de sua criação.
Ricardo do Rosário continua a saga que vem explorando ao longo do ano com um personagem bem marcante. Desta vez, ele leva ao Mesc “A Origem da Coruja Cósmica”, ser misterioso que é parte das lendas esquecidas da Ilha.
“A noite caiu e o mar ascendeu em uma dança coordenada entre ondas e estrelas. Um turbilhão se formou no horizonte… Aos poucos, foi tomando forma no meio de um emaranhado de cores e texturas”. A origem da coruja, conforme textos encontrados em uma espécie de tumba, abaixo das dunas da Lagoa da Conceição, revelaria as crenças de uma civilização pré-humana, que até hoje não se sabe de onde veio. Rosário frisa que sua arte é uma tentativa de ilustrar o momento deste acontecimento.
Marlene Eberhardt traz o legado de Eli em “Redenção”, com o gesto intuitivo, o feminino criador e a potência da matéria. A Lagoa da Conceição é o centro dessa obra, em que constrói texturas, linhas e contrastes de cores, revelando tanto beleza quanto degradação. “Como uma coletora, recolho a cor que se dissolve, a linha que resiste, o silêncio que emerge da água.”
Para ressignificar Eli, Marilene de Orleans apresenta “Cotidiano e Guerra”. “Sempre trabalhei com a terra, a natureza, a poluição e temas como desigualdade, preconceito, resistência e perdas. Não poderia deixar passar a oportunidade de abordar temas tão atuais”, frisa. Na instalação, reúne materiais que a própria Eli usava – lona preta, fio de cobre, fios de lã e linha, tecidos, tampinhas de garrafa pet, argolas de cortina, rolinhos de toalha de papel, pedrinhas, conchas e caramujos, cerâmica, bonecas, renda e rede de pesca – e que muitas vezes vão parar nos oceanos. “No gesto de recolher, limpar e separar o lixo cresce a esperança de um mundo melhor”, reflete.
Outra instigante instalação é assinada por Júlia Steffen. “Explosão do Meu Ovário” traz elementos centrais da obra de Eli: escritas, cores vibrantes, olhos, formas orgânicas que parecem com seios, ovários, trompas ou até testículos. A inspiração vem de uma fala da artista ao jornal AN Capital: “O Mundo Ovo é a explosão do meu cérebro e do meu ovário”.
Júlia reconfigura a explosão, que nasce de uma vagina, com olhos animais e humanos à espreita. “Meu fazer artístico evoca a luta contra a violência de gênero sofrida pelas mulheres, por meio dos olhos que saltam das formas orgânicas tridimensionais”, frisa.
Roberta Viotti resolveu eternizar o largo sorriso de Eli, “uma artista poliédrica”. Como sempre gostou de fazer retratos, primeiro com grafite e depois com aquarela, traz duas versões de retratos da artista: a primeira com as cores naturais da foto e, a outra em formas coloridas, trazendo elementos de suas pinturas, como os círculos, as cores vibrantes e os contornos.
Isolete Dozol criou a tela “Céu, Mar, Terra e Devaneios Civilizatórios” para entrar no mundo da Eli, onde, conclui, há que se manter um pé dentro, outro fora. “É muito fácil ser capturada pelos seus seres e criaturas imaginárias, porém poderosos, que nos espreitam de suas teias. Não atacam, mas ao menor descuido, seduzem”, observa.
David Ronce também ressignifica Eli em “Até os Tornozelos”, em grafite médio, pastel, marcadores, giz de cera e lápis de cor. Na superfície, formas e gestos emergem e se retraem, como se obedecessem a um ritual contínuo de aparição e dissolução. O traço, ora contido, ora em êxtase, cria um território de memória em que a mão se move guiada pela lembrança do gesto. O diálogo com Eli se dá na liberdade do fazer.
Silvia Da Ros criou o bordado “Morphogenesis”, no qual contempla a criação do Mundo Ovo. Ela conheceu Eli num evento e passou a admirá-la não só como pintora, escultora e escritora, mas pela forma de expressar-se. “Tento ser múltipla em figuras que caracterizo como humanóides, bem como nas de um fictício bestiário coletados nas marcas de fungos de uma velha cortina, uma peça que tanto separa mundos como, quando aberta, une.”
Audrey Laus mesclou colagem, bordado e aquarela em “Fios e Gestos”, inspirado na obra “Mãos Olhudas”. A costura e o bordado remetem aos gestos da avó materna, que se dedicava às artesanias têxteis e à cura, marcando o tecido da existência.
Dulce Penna volta a mesclar suas inconfundíveis máscaras de cerâmica em “Três Faces do Eu”. Sobre uma tela de acrílico, emergem do barro os rostos em transformação, corpos de cor e expressão. A tela de acrílico, pintada em 2010 com tons azuis, roxos e vermelhos, serve de chão para o encontro entre pintura e cerâmica. “É uma homenagem à força criadora de Eli Heil, mas também uma busca pessoal”, reflete.
A religiosidade, a açorianidade e o colecionismo de Vera
Vice-presidente da Acap e presença marcante em todas as mostras do ano, Maria Esmênia resolveu reunir suas coleções pessoais na instalação “A Coleção Como Tempo e Memória”. Para ressignificar a obra de Vera, selecionou quatro coleções, vistas como um gesto de ancestralidade, de memória que se materializa e identidade que se reconhece.
“Nas xícaras, guardo o afeto que continua vivo; nos bichinhos, os mundos que encontrei e que me encontraram; nos copinhos, as celebrações; e nos presépios, a origem que ainda respira. O que guardo não é objeto, é rastro, presença, permanência, onde a memória não dorme, mas habita.”
Eliane Veiga optou por ressignificar a religiosidade trabalhada por Vera em “Devoção de Maria”, instalação composta por uma caixa de vidro com objetos religiosos que pertenciam a Maria, sua mãe, símbolos da religiosidade passada pelos açorianos. “As práticas religiosas me acompanham desde pequena”, sintetiza, lembrando que após a morte da mãe se interessou por esses objetos de valor afetivo.
Miriam Porto também explora a religiosidade na instalação “Devocional”, uma construção com quatro peças. Na linha da formação religiosa, as rezas passadas de geração em geração se refletem em uma toalha de crochê com sachês impressos com santos, alguns datados de 1935, e pequenos bordados recheados com a Oração da Casa. Também traz três capelas que passam pelas casas nos momentos de fé.
Ana da Nova leva para o Mesc “Recortes de Uma Vegetação Ressignificada”, no qual duas folhas se unem como páginas de um livro. “É um portal para paisagens recortadas, alusões poéticas à vegetação exuberante que habita as obras de Vera, cujas telas capturam o pulsar histórico e cultural de Santa Catarina”, observa. A obra convida o espectador a desvendar as texturas, a sentir o aroma imaginário da terra úmida e a refletir sobre como, em recortes de paisagens, o passado pode ser colado de volta, mais vivo e urgente.
Mariette Van de Sande criou “Mulheres Coletoras”, em que figuras femininas carregam em suas cestas as vivências, aprendizados, valores e amores coletados em suas vidas, como protagonistas na construção da sociedade. Inspirada em Vera, usou cores intensas, olhares expressivos, pássaros e a coruja, simbolizando a natureza e a sabedoria, sempre presentes nas obras da artista.
Lilia Lubian explorou a técnica de acrílica sobre tela e colagens em “A Mulher, o Escorpião e a Magia da Natureza”, em que duas mulheres se encontram: uma deusa do Antigo Egito e uma artista nascida à beira-mar de Santa Catarina, unidas por um signo de poder e mistério — o escorpião.
Serket, a deusa escorpiana, regia os domínios da cura e da magia. Vera, filha do mesmo signo, trilha caminhos parecidos em seus quadros, povoados por rendeiras, bruxas, animais e orações, revelando um mundo onde o real se curva diante do simbólico.
Museu Victor Meirelles também exibe mostra da Acap até ano que vem
Além da exposição que vai estrear na sexta, a Acap continua presente também em outro espaço nobre da Capital, o Museu Victor Meirelles, com “Movências: Ressignificação dos Oito Fundadores da Acap: Eli Heil, Franklin Cascaes, Martinho de Haro, Max Moura, Ernesto Meyer Filho, Pedro Paulo Vecchietti, Rodrigo de Haro e Vera Sabino”, que fica em cartaz até 2 de fevereiro de 2026.
AGENDE-SE
PARA VISITAR “AS COLETORAS”:
Onde: Mesc (Museu da Escola Catarinense) (rua Saldanha Marinho, 196, Centro, Florianópolis)
Quando: de 5/12/2025 a 24/2/2026 – às segundas e terças, das 13h às 19h, quartas, quintas e sextas, das 10h às 19h, e sábados, das 10h às 17h
Quanto: entrada gratuita
PARA VISITAR “MOVÊNCIAS…”
Onde: Museu Victor Meirelles (rua Victor Meirelles, 59, Centro, Florianópolis)
Quando: de terça a sexta, das 10h às 18h, e sábados, das 10h às 18h, até 2 de fevereiro de 2026
Quanto: entrada gratuita
PRÓXIMA EXPOSIÇÃO DA ACAP
MArquE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)
Além das seis exposições de 2025, a curadora Meg Tomio Roussenq assinará em 2026 coletiva exaltando Franklin Cascaes, no espaço que guarda o acervo do artista
Quando: 3/3/2026
Para acompanhar a Acap:
Site: https://www.acap-art-sc.com/
Instagram: @acap.art.br
Facebook: https://www.facebook.com/acap.art.br/
Youtube: @acap-associacaocatarinense7031








